Liberdade de Informação: e o direito que os cidadãos têm de ser informado de tudo que se relaciona com a vida do Estado, e que, por conseguinte é de seu peculiar interesse. Esse direito de informação faz parte da essência da democracia. Integra-o a liberdade de imprensa e o direito de ser informado. Artigo 5º inciso XXXIII, da Constituição Federal. Prof. Franscisco Bruno Neto.

22 de novembro de 2010

Cotas nas universidades: injustiça e divisão racial

Revista Catolicismo
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Novembro, 2010
Cotas nas universidades: injustiça e divisão racial

Mestre em História do Direito, o Prof. Ibsen Noronha mostra que a questão das cotas raciais poderá desviar o País de sua vocação, fracassando na tarefa de manter unidas as três raças que deram origem ao povo brasileiro.

O debate sobre as cotas raciais nas universidades chegou ao Supremo Tribunal Federal, que em março deste ano convidou 30 especialistas para três dias de audiência pública. Dentre estes destacou-se o Professor Ibsen Noronha, que expôs sua crítica bem fundamentada às cotas raciais nas universidades brasileiras. Baseou-se no conceito de Justiça adotado pelos juristas romanos, e que Santo Tomás de Aquino desenvolveu: Suum cuique tribuere, neminem lædere, ou seja, dar a cada um o seu e não lesar ninguém.

Sobre esta importante questão, Catolicismo entrevistou o Prof. Ibsen Noronha. Ele é Mestre em Direito pela Universidade de Coimbra, com a tese intitulada Aspectos do Direito no Brasil Quinhentista - Consonâncias do espiritual e do temporal. Galardoada com o prêmio Doutor Guilherme Braga da Cruz como melhor tese jurídico-histórica, ela foi publicada em Portugal em forma de livro, pela editora Almedina.

O Prof. Ibsen ensinava História do Direito Brasileiro na UnB, em Brasília, ao tempo da audiência pública no STF. É professor de História do Direito no IESB, e de Filosofia do Direito na UDF. É também assistente da Vice-Reitoria da UNILEGIS do Senado Federal. Proferiu diversas palestras sobre temas histórico-jurídicos no Brasil, Portugal e França. Prepara doutoramento pela Universidade de Coimbra sobre a legislação relativa à escravidão na História do Brasil.

Catolicismo - Qual a primeira razão para ser contra o sistema de cotas nas universidades?

Prof. Ibsen Noronha - É uma razão lógico-histórica. A grande riqueza do Brasil é o seu povo miscigenado, que possui virtudes dos povos da Europa, África e América. Criar uma divisão racial no Brasil é um crime histórico. Além disso, a universidade tem como fim primordial a transmissão do conhecimento e a pesquisa. Tentar transformá-la em meio de ascensão social é desvirtuar e empobrecer esta digníssima instituição criada na Idade Média.

Catolicismo - Como um professor de Historia do Direito analisa a imposição de cotas nas universidades para efeito de reparação histórica?

Prof. Ibsen Noronha - Quando se fala em dívida histórica no Brasil, de chofre a escravidão se apresenta como referência para os raciocínios. Essa chaga social, de fato, faz parte da nossa História, não há como apagar. Podemos lamentar, mas fará sempre parte da História do Brasil. E faz parte ainda hoje da História da África! Ela existe até hoje naquele sofrido continente. Artigo recente, publicado em quotidiano de grande circulação, denuncia a escravidão em cinco países africanos, marcada por grilhões.(1) É indignante! Registre-se: a existência hoje de escravidão na África é útil para raciocinarmos historicamente!

A abolição da escravidão no Brasil pode ser estudada sob diversas perspectivas: religiosa, econômica, sociológica, cultural e outras mais. Importa aqui observá-la sob o prisma jurídico. Foi um processo - e a História deve ser vista sempre como processo - do qual a lente jurídico-histórica permite uma visão panorâmica. Desde a Independência até a Lei de 13 de maio de 1888, vemos as ações legislativas do Império do Brasil voltadas para a libertação de todos os que estivessem no Brasil - note-se: nascidos no Brasil ou na África!

Sobre este tema, publiquei o artigo Processos Legislativo e Doutrinário de abolição da escravidão no Império do Brasil, com diversos e copiosos textos de lei analisados que iniludivelmente favorecem a compreensão do que se passou. São fontes primárias, e evitam uma história de segunda ou terceira mão...

Lembro, contudo, que nesse processo tivemos a chamada Lei do Ventre Livre, que tornou irremediável o fim do cativeiro no Brasil. Estava presente nas galerias do Parlamento, quando da votação em 28 de setembro de 1871, o embaixador norte-americano James Rudolph Partridge. Aprovada a lei, numa reação autenticamente brasileira, houve uma chuva de flores sobre o plenário. O embaixador procurou o presidente do Conselho para felicitá-lo, e colhendo algumas flores, disse: "Vou mandar estas flores ao meu país, para mostrar como aqui se fez, deste modo, uma lei que lá custou tanto sangue!"

Catolicismo - Como a legislação brasileira influiu no início e na extinção da escravidão?

Prof. Ibsen Noronha - A escravidão africana no Brasil surgiu na segunda metade do século XVI, portanto, no Brasil-colônia. Os motivos da opção pela escravidão africana são dos mais diversos. Aponto ao menos um, relacionado especificamente com a história do Direito Brasileiro. Havia a legislação de proteção ao índio contra os cativeiros injustos, que grassavam nos primórdios da nossa História, e ela foi de extrema importância para o início do tráfico africano. Ressalto que do período colonial possuímos, documentados, vários casos de assimilação dos índios na sociedade que nascia. Muitos foram juízes e chegaram a receber títulos de nobreza.(2)

Quanto ao negro, também já temos, documentada e estudada, a sua inserção como homens livres na sociedade durante o período colonial. São os libertos. Hoje está razoavelmente bem estudado o tema dos escravos forros. Eles ingressaram na sociedade. Muitos enriqueceram e... possuíram escravos. Temos notícia também de africanos que ingressaram no clero, chegando alguns a alcançar a honra de bispos. Outros, por exemplo, alcançaram cargos importantes na magistratura - a chamada noblesse de robe.(3)

Catolicismo - Visto que se desconhecem vários aspectos da história da escravidão, poderia discorrer um pouco sobre o direito de propriedade dos escravos, e também sobre o direito que porventura possuíam de constituir família?

Prof. Ibsen Noronha - Sim. Vejamos alguns aspectos de duas leis muito conhecidas, mas conhecidas apenas parcialmente. O gabinete do Partido Conservador, liderado pelo Visconde do Rio Branco, aprovou em 28 de setembro de 1871 a lei que libertava todos os filhos de escrava que nascessem desde então. A Lei nº 2.040 ficou conhecida como Lei do Ventre Livre e serviu para estancar o aumento, pelo nascimento, do número de escravos no Brasil. Mas tinha alcance muito mais amplo. O artigo 4º, por exemplo, dispunha que era permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe proviesse de doações, legados e heranças; e com o que, por consentimento do senhor, obtivesse do seu trabalho e economias.

A Caixa Econômica foi criada por Dom Pedro II com o propósito de incentivar a poupança e conceder empréstimos sob penhor, com a garantia do governo imperial. Deste modo, a Caixa rapidamente passou a ser procurada pelas camadas sociais mais populares, incluindo os escravos, que podiam economizar para suas cartas de alforria.

A Lei também previa a preservação da família unida. Proibia a venda ou transmissão de escravos com a separação dos cônjuges, sob pena de nulidade; e os filhos menores de doze anos não podiam ser separados do pai ou mãe. De fato, o Direito Canônico já protegia a família livremente formada pelos escravos. Interessante consultar as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, publicadas em inícios do século XVIII, e já nos deparamos com o manto protetor da Igreja ao sacramento do Matrimônio e à família.

O Império procurou amparar os idosos. A Lei dos Sexagenários, de 1885, libertou os escravos com mais de sessenta anos. Entretanto proibia a libertação, pelo fundo de emancipação, de escravo inválido considerado incapaz de qualquer serviço. Este deveria permanecer na companhia do seu senhor e por ele amparado.

Note-se que estes são dispositivos silenciados na apresentação histórica dessa legislação relativa aos escravos no Brasil.

Catolicismo - Essa é realmente uma história pouco conhecida da escravidão...

Prof. Ibsen Noronha - Os defensores das cotas apresentam comumente duas proposições. Primeiro, que a desigualdade racial vigente hoje no Brasil tem fortes raízes históricas. Segundo, que as raízes do problema estão vinculadas ao escravismo. O perigo de tomar estas proposições como premissas de raciocínio válido e verdadeiro se manifesta nas conseqüências possíveis, porquanto se a causa das mazelas é a escravidão, como se afirma, a conseqüência é: compensemos com as cotas! Estamos perante falácias da causalidade.

Há real perigo de INJUSTIÇA ao se buscar a solução com a premissa vincada em tal causalidade. Por quê? Documentos históricos provam que desde o século XVI tivemos negros forros ou libertos no País. Em nossos dias, repito, já está relativamente bem estudada a condição do liberto, e podemos afirmar que muitos prosperaram econômica e socialmente. O número de libertos aumentou sensivelmente nos séculos XVII, XVIII e XIX, a ponto de em 1888 - ano da célebre Lei assinada pela Princesa Isabel - contar o Império com apenas 5% da população como escravos.

Estudos sérios apresentam a dinâmica natural dos libertos vinculada à miscigenação, e naturalmente à aquisição de escravos. Impressiona a cifra referente à cidade de Campos de Goytacazes ao final do século XVIII. Cerca de um terço dos senhores de escravos eram "de cor". E tal se dava também em regiões de muita escravaria, como Pernambuco e Bahia. Sobre o assunto a bibliografia é bastante alentada. Assim sendo, um descendente de escravocrata poderá se beneficiar de uma vaga. Por outro lado, um descendente de imigração recente - italiano, polonês, alemão, japonês e até finlandês (pois o Brasil é tradicionalmente generoso na acolhida) - seria lesado, preterido em conseqüência de um argumento falacioso, mal fundamentado na História.

A não ser que os genealogistas (um tanto esquecidos e até desprezados depois de 1789) sejam contratados em massa para as comissões que decidem acerca das cotas nas universidades, corremos assim o real perigo de cometer uma INJUSTIÇA baseada na dívida histórica (isso, aliás, provavelmente já terá acontecido). Ou seja, a dívida (se existisse) não estaria sendo paga, e pelo contrário estaríamos produzindo uma verdadeira e palpável dívida nos dias que correm!

Catolicismo - Quais são as injustiças?

Prof. Ibsen Noronha - Trata-se de tomar posição em relação à compensação histórica a partir da dívida histórica, e isso certamente não é exercício acadêmico. As posições, fruto de uma visão de mundo, se concretizam. Raciocinemos mais uma vez a partir de duas posições antagônicas, úteis para o nosso saudável desejo de analisar o problema com seriedade. O antigo Reitor da UnB, ex-ministro da Educação e atual senador Cristóvão Buarque, afirmou admitir que as cotas prejudicarão alguns brancos ao cederem os seus lugares a estudantes com nota inferior. Contudo considerou ser preciso cometer injustiças pontuais para corrigir uma enorme injustiça histórica. Já o atual governador de São Paulo Alberto Goldman, quando deputado, manifestou-se perplexo acerca da instituição das cotas raciais. Seu neto, filho de um quatrocentão paulista - portanto, fruto de grande miscigenação - poderia ter acesso a esta vantagem, enquanto sua empregada, filha de ucraniano casada com filho de ucraniano, não poderia pleitear tal vantagem para o seu filho.

Eis dois raciocínios bastante distintos acerca do problema. Dar a cada um o seu, sem lesar ninguém! Em qual deles está mais evidente esta preocupação?

Catolicismo - Além das injustiças, quais são as outras conseqüências?

Prof. Ibsen Noronha - Um grande professor de Lógica da UnB, Doutor Nelson Gomes, afirmou que a política de cotas modifica a posição do Brasil, até então reconhecido como País racialmente tolerante e integrador. Declarou também que, no futuro, a cesura representada pelas cotas pode trazer intolerância racial e outros problemas sérios. Este novo quadro é possível, pois os brasileiros têm agora na cor uma característica que lhes pode trazer vantagens ou desvantagens. Aonde tal processo conduzirá este País, no qual os grupos humanos se reorganizam segundo critérios a tal ponto duvidosos, apesar de tantos exemplos ruins(4) fornecidos por outras sociedades?

Ainda uma derradeira observação. É perfeitamente legítimo buscar na história de um País como o Brasil uma vocação. O fenômeno histórico permite tal ilação à luz da Filosofia da História ou da Teologia da História. Podemos observar que a harmonização dos povos que para aqui vieram ao longo dos nossos cinco séculos de vida faz parte do pulchrum da nossa história. Os deslizes e contradições formam a exceção - e que povo não as teve? O Brasil prefere a harmonia à oposição e luta entre raças, e aqui as culturas diversas se completam amistosamente em um só povo. A busca do equilíbrio e da harmonia, notável ao longo de toda a nossa história, é a nossa grande riqueza e o nosso exemplo para o mundo, a nota especial que o Brasil deve fazer vibrar no concerto das nações. Sobre esta visão da história e vocação do Brasil, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, em sua obra Projeto de Constituição Angustia o País,(5) defende e alerta para a harmonização das etnias em oposição à luta de raças. Permita-me citar o texto:

"Com essas palavras fica lembrado que no Brasil não existem apenas as etnias indígena e negra, mas que outras raças têm sido por vezes chamadas, outras vezes aceitas de braços abertos, pelo nosso País, para participarem do esforço de aproveitamento de todas as nossas riquezas".

"Dentre as mais numerosas e mais marcadas por suas específicas características, notam-se as colônias japonesa e síria, que se têm destacado sobremaneira nesse afã".

"Também importa marcar que - além dos portugueses, cuja descendência tem muito naturalmente a preponderância numérica, cultural e histórica na formação do povo brasileiro - outros povos europeus, ao aqui se estabelecerem, trouxeram consigo as tradições, os hábitos, o idioma e os modos de pensar, de sentir e de viver das respectivas pátrias de origem".

Não temo encerrar esta breve entrevista invocando a Divina Providência para que aja na História, não deixando o Brasil desviar-se da sua vocação, da sua missão de País luzeiro da civilização cristã, dando a cada um o seu sem lesar ninguém!

Leia a íntegra http://www.catolicismo.com.br/materia/materia.cfm/idmat/2736ADA7-3048-313C-2EA19AE9D168A73B/mes/Novembro2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns professor ! Comungo totalmente c/ esse opinião s/ a questão das cotas. Além de uma verdadeira aberração jurídica já identificada,trata-se de aí sim uma discriminação de raças no Brasil. Não há de se falar em compensação histórica se os negros já conquistaram o seu espaço, tal qual o branco. Sou branco, não pedi p/ nascer branco, não pedi p/ ser colonizado por portugueses, e por aí vai...Os negros (ou os politiqueiros oportunistas) deveriam enxergarem esse lado.Quer ir para a Universidade Pública, tem que estudar(normalmente, como todos),enfrentar concurso e, se passar, aí sim, frequentar o curso escolhido e se formar. Nem todos os brancos têm acesso, nem todos os brancos chegam lá...De "graça" não tem graça, tem que "ralar", não é mesmo professor?! Eu, se negro fosse, provaria a mim mesmo que poderia ser igual ao branco, me empenhando nos estudos p/ poder "chegar lá" e ter, enfim, o reconhecimento tão desejado.Pra resumir professor, o senhor nos fez refletir bem sobre o tema e, sobre ele, concluo que, esse tema tem 2 facetas :a)políticos/politiqueiros-oportunistas que desejam gravitar nessa esfera de discussão. b)vagabundos/oportunistas que pretendem tal "oportunidade" p/ frequentar(sem qq mérito) uma Universidade.Att. João Gabriel